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Veja como o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado a Lei Maria da Penha

As medidas protetivas de urgência são um dos principais mecanismos de amparo às mulheres previstos na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Apenas em 2018, foram aplicadas 339,2 mil medidas protetivas, um aumento de 16% em relação ao ano anterior, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. No mesmo ano, havia mais de 1 milhão de casos de violência doméstica tramitando na Justiça brasileira.

Recentemente, a Lei 13.641/2018 criminalizou a conduta de descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência, prevendo a pena de três meses a dois anos de detenção.

Ainda assim, o número de denúncias de violações contra a mulher é preocupante: em 2018, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu 92,6 mil ligações. Só nos primeiros seis meses de 2019, o canal já atendeu 46,5 mil denúncias, um aumento de 10,9% em relação ao mesmo período do ano anterior. A maioria é referente a violência doméstica e familiar (35,7 mil), seguida por tentativa de feminicídio (2,6 mil), violência moral (1,9 mil) e ameaças (1,8 mil).

Para o ministro do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão, a especial atenção conferida à violência doméstica “constitui providência de estatura constitucional e é pauta permanente de debates nacionais e internacionais, tamanha a relevância do problema e a extensão dos danos causados ao longo da história”.

Em 2014, em julgamento sob a relatoria de Salomão, a 4ª Turma definiu que as medidas protetivas previstas na lei, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para proteger a mulher da violência doméstica, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor.

O colegiado negou provimento ao recurso especial de um rapaz cuja mãe ajuizou ação protetiva contra ele, após apresentar atitudes violentas (xingamentos, ofensas, ameaças e pressão psicológica) em razão de doação de imóvel feita por ela e o falecido esposo aos seus seis filhos, com reserva de usufruto vitalício.

Ao STJ, o rapaz alegou que a mãe seria carecedora de ação por ausência de interesse jurídico na demanda, já que nem ela nem o Ministério Público ofereceram queixa-crime ou denúncia contra ele, o que impediria o prosseguimento da ação, a qual seria acessória ao processo criminal.

Processo civil
O ministro Salomão afirmou que o papel da Lei Maria da Penha no ordenamento jurídico é ampliar os mecanismos jurídicos e estatais de proteção à mulher, parecendo claro “que o intento de prevenção da violência doméstica contra a mulher pode ser perseguido com medidas judiciais de natureza não criminal, mesmo porque a resposta penal estatal só é desencadeada depois que, concretamente, o ilícito penal é cometido, muitas vezes com consequências irreversíveis, como no caso de homicídio ou de lesões corporais graves ou gravíssimas”.

Assim, para o ministro, utilizar a via das ações de natureza civil, com aplicação de medidas protetivas da lei, pode evitar um mal maior, sem necessidade de posterior intervenção penal nas relações familiares.

“Se é certo que a Lei Maria da Penha permite a incidência do artigo 461, parágrafo 5°, do Código de Processo Civil para a concretização das medidas protetivas nela previstas, não é menos verdade que, como pacificamente reconhecido pela doutrina, o mencionado dispositivo do diploma processual não estabelece rol exauriente de medidas de apoio, o que permite, de forma recíproca e observados os específicos requisitos, a aplicação das medidas previstas na Lei 11.340/2006 no âmbito do processo civil”, ressaltou.

Pensão alimentícia
Em novembro de 2018, a 3ª Turma entendeu que é possível, no âmbito de ação criminal destinada a apurar crime de violência doméstica e familiar, impor o pagamento de pensão alimentícia ao investigado (conforme o inciso V do artigo 22 da Lei 11.340/2006), constituindo a determinação título hábil para cobrança e, em caso de não pagamento, passível de decretação da prisão civil do devedor.

Na ocasião, o colegiado não conheceu do recurso em habeas corpus de um homem investigado por agressão e ameaça à sua então companheira, inclusive por ter ateado fogo na residência em que a mulher e a filha se encontravam, em Monte Carmelo (MG). Além de decretar a prisão preventiva do acusado, o juízo criminal impôs a medida protetiva alimentar.

No entanto, por não ter cumprido a determinação, foi decretada a prisão do devedor em ação de execução alimentar. A defesa impetrou recurso em habeas corpus ao STJ, argumentando que a decisão que fixou alimentos provisórios seria inidônea para subsidiar a ação de execução de alimentos, sendo indispensável o ajuizamento de ação principal, com a viabilidade do contraditório, no prazo de 30 dias, sob pena de decadência.

O relator do recurso, ministro Marco Aurélio Bellizze, explicou que não há dispositivo legal que preveja a necessidade de ajuizamento de ação de alimentos perante a vara de família, no prazo de 30 dias, para efeito de exigibilidade da medida protetiva de alimentos.

O ministro lembrou a competência híbrida (criminal e civil) da vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher para o julgamento e execução das causas. Ele ressaltou que, no caso, a medida protetiva de alimentos foi proferida por juízo materialmente competente (criminal, diante da inexistência do juizado especializado na cidade), e “não precisa, por óbvio, ser ratificada por outro juízo, no bojo de outra ação”.

Segundo Bellizze, a medida fixada por juízo materialmente competente “consubstancia, em si, título judicial idôneo a autorizar a credora de alimentos a levar a efeito, imediatamente, as providências judiciais para a sua cobrança, com os correspondentes meios coercitivos que a lei dispõe (perante o próprio juízo). Compreensão diversa tornaria inócuo o propósito de se conferir efetiva proteção à mulher em situação de hipervulnerabilidade, indiscutivelmente”.

Ameaça internacional
Em 2018, a 3ª Seção do STJ estabeleceu a competência da Justiça Federal para julgar caso de crime de ameaça em que o suposto agressor, que vive nos Estados Unidos, teria utilizado uma rede social para ameaçar a ex-namorada residente no Brasil.

Com base em entendimento do Supremo Tribunal Federal, o colegiado concluiu que, embora as convenções firmadas pelo Brasil em temas ligados ao combate à violência de gênero não tratem do crime de ameaça, a Lei Maria da Penha concretizou o dever assumido pelo país de proteger a mulher contra toda forma de violência.

O conflito de competência analisado no STJ teve origem em uma ação pleiteada pela mulher para fixar medidas protetivas no âmbito da Justiça estadual em razão de supostas ameaças feitas, via rede social, por um homem com quem manteve relacionamento quando fez intercâmbio nos Estados Unidos.

Como o suposto autor das ameaças estava em território estrangeiro e não havia notícia de sua entrada no país, o relator do conflito, ministro Joel Ilan Paciornik, entendeu que se tratava de um possível crime a distância, tendo em vista que as ameaças foram praticadas nos EUA, mas a suposta vítima teria tomado conhecimento de seu teor no Brasil.

O ministro reconheceu que não há, nesse caso, crime previsto em tratado ou convenção internacional dos quais o Brasil seja signatário, como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.

No entanto, o relator destacou que, em situação semelhante, o argumento de ausência de tipificação em convenção internacional foi derrubado pelo STF ao analisar casos de pedofilia na internet. Em julgamento com repercussão geral reconhecida, a Suprema Corte concluiu que o Estatuto da Criança e do Adolescente é produto legal de acordos internacionais celebrados pelo Brasil.

“À luz do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, embora as convenções internacionais firmadas pelo Brasil não tipifiquem ameaças à mulher, a Lei Maria da Penha, que prevê medidas protetivas, veio concretizar o dever assumido pelo Estado brasileiro de proteção à mulher”, concluiu o ministro ao fixar a competência da Justiça Federal.

Valoração da personalidade
Ao julgar o HC 452.391, a 6ª Turma definiu que o descumprimento reiterado de medidas protetivas de urgência era fundamento idôneo para valorar negativamente a personalidade de um homem, condenado por homicídio triplamente qualificado e ameaça contra a ex-namorada.

A defesa do paciente alegou ao STJ que haveria ilegalidade nessa valoração, diante da falta de laudo técnico firmado por especialistas nos autos, bem como por não estar demonstrado com elementos concretos que ele possuiria comportamento criminoso contumaz, ou que seria sujeito degenerado, perverso ou perigoso.

A personalidade do agente foi valorada de forma negativa pela magistrada sentenciante e pelo Tribunal de Justiça do Paraná por diversos fundamentos, entre os quais, o fato de ter descumprido medida protetiva consistente na proibição de se aproximar a menos de 300 metros da ofendida, bem como de manter contato por qualquer meio de comunicação com ela. Mesmo com essas determinações, ele matou a ex-namorada a golpes de faca quando ela tinha 60 anos.

Para o relator do habeas corpus, ministro Rogerio Schietti Cruz, o comportamento do homem “revela seu especial desrespeito e desprezo tanto pela mulher quanto pelo sistema judicial. Ademais, denota intrepidez do paciente, porquanto, não obstante imposição judicial de proibição de aproximação da vítima, a providência foi por ele desprezada a fim de concretizar o objetivo de matá-la”.

O ministro observou que a análise da personalidade, na primeira fase da dosimetria da pena, pode se basear na demonstração, em concreto, de que o réu foi notadamente vil na prática do fato criminoso e extrapolou a abrangência do tipo penal.

Schietti ainda lembrou precedente do STJ segundo o qual a circunstância judicial relativa à personalidade não depende de laudo técnico, podendo ser verificada pelo magistrado a partir de elementos extraídos dos autos, que demonstrem a acentuada periculosidade.

Ao negar o pedido do paciente, o relator ressaltou que “a menção ao descumprimento reiterado de medidas protetivas é motivação apta a ensejar-lhe o aumento da pena-base, razão pela qual o quantum da reprimenda não merece reforma”. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Consultor Jurídico

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